Vem do lado de lá, estranhamente inconfundível entre as outras
pessoas. Ele reconhece-a pelo caminhar balouçado, entortando ligeiramente o mesmo
pé direito. E surpreende-se pela forma como o seu desajeitado modo de pisar
resulta tão bem com a leveza assimétrica e perfeita das generosas ancas dela.
Depois identifica a mesma postura nos dedos das mãos, esguios e finos,
esgueirando-se pontualmente nas marrafas fartas do cabelo teimoso. As mesmas
mãos compridas, mas dela, paradoxalmente mais brandas e mais claras,
perplexamente iguais. Em segundos, ela desvia os caracóis das mesmas
sobrancelhas abundantes, mas mais desenhadas, quando enfoca um castanho profundo
no fundo do mesmo arqueado dramático do seu olhar. Tão semelhante a expressão
de sonho e de susto, e o idêntico pestanejar distraído quando decidem voltar a
cabeça para outro lado. É o mesmo gosto pelas roupas claras, a mesma maneira de
traçar a mala de couro, a mesma tendência pelo lado mais interior do passeio. Aquela
versão delicada e eufemística da sua maneira desleixada de ser banal. E o
inconfundível atributo de reparar em tudo sem fazer alarido, sem dar sinal de
nada. Enquanto os dois se aproximam, ele tem a certeza de que ela vai abordá-lo
com um sarcasmo delicioso, uma alusão irónica aos caracóis ou uma piada
desconcertante sobre o destino em que ambos acreditam sem querer. De tal forma
que, quando ela se aproxima, ele adivinha-lhe o seu cheiro sem perfume e sabe
que, quando ela o tocar, vai querer perfumá-la desse mesmo odor. Enquanto eles
caminham para a colisão que ele espera, ele sabe que, se ela for mesmo igual a
ele, não vai evitar de desarmá-lo com uma frase tonta, e vai fazê-lo parar com
uma suavidade só sua, mas mais atraente, e a seguir fazer uma conversa
encantadora sobre uma coisa qualquer. Enquanto as sapatilhas rafadas dele se
cruzam com as sandálias velhas dela, ele tem a certeza de que, se ela for mesmo
igual, vai voltar atrás logo de seguida, com um gesto descontraído e cheio da
energia dele. Ou, melhor, se ela for mesmo igual a ele, até talvez espere um
pouco mais, só para tornar tudo mais demorado. Só para depois querer voltar
atrás. Só para depois querer ter voltado atrás.
Crónicas de Ana Rute
"Se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, não há nada mais simples, tem só duas datas - a do meu nascimento e a da minha morte. Entre uma e outra coisa todos os dias são meus." Alberto Caeiro
terça-feira, 4 de fevereiro de 2014
quarta-feira, 18 de dezembro de 2013
poema
Poema era o nome dela. Chamava-lhe assim por causa da música que trazia
consigo ao passar. Porque ela se recitava em voz alta nos dias felizes e se
sussurrava para dentro nos dias tristes. Tinha uma métrica que não era bárbara
nem alexandrina, era só sua. E olhá-la era sucumbir a um arquejo irresistível
de lirismo. Na verdade, ela era um reservatório de recursos estilísticos, cheio
de matizes, com muitos sentidos possíveis. E a vontade que dava era de segui-los
a todos, de lê-la sem parar, vezes sem fim, em todos os tons, com todas as
respirações. A cada leitura ela era sempre nova e era sempre mais, sempre
diferente. Com muitas ou poucas sibilantes, toda ela era um rendilhado de
tónicas e átonas. Era um soneto desrespeitado, uma ode em improviso, um
estribilho sem repetição. Ela era uma aliteração em m de mulher, de madrigal, de
maranharado, de marulhado, de metafórico. Irregulares na forma e no conteúdo, as
suas gargalhadas eram estrofes desatadas de doçura. E a sua graciosidade esboroava
na vida, como um punhado de versos numa folha branca. Livre, tinha em cada
gesto uma personificada graça, uma declamada intenção. No trato, a ligeireza de
um rondó, e, no carácter, a força vitoriosa de uma epopeia. Límpido, o rosto expressivo
tinha vírgulas e espaços, mas nunca pontos finais. Os lábios eram rimas sinuosas
em perfeita dicção, um paradoxo de paganismo e erudição. Nos olhos, uma elegia
sem tristeza, uma hipérbole de fantasia, um eufemismo de tudo. Se ela pudesse
ser escrita, ela não seria escrita, seria desenhada, manuscrita com a brandura
do momento, com a delicadeza espontânea da caligrafia arredondada. Se ela
pudesse ser escrita, o seu corpo versificado teria de ser esculpido por
artesãos num torno de palavras. Se ela pudesse ser escrita, seria em cadernos
lisos e perfumados, cadernos em número infinito, e muitas folhas soltas. Se ela
pudesse ser descrita, na anáfora interminável da memória, não poderia jamais
ser publicada. Porque todos ao pé dela pareceriam só mais uma prosa. E prosa
nenhuma poderá alguma vez ser Poema.
sexta-feira, 13 de dezembro de 2013
I have a dream
Sonho. Com a janela escancarada sobre os tomos do tempo, sobre o rio
ofegante e estático, sobre a tela encenada das casas, que aguarda o grande
acontecimento de qualquer coisa ou nenhuma. O ontem emoldurado e ténue. O
amanhã desvelado sob a cortina de tule orvalhada, esquadrinhado, espreitante e
esperto, desperto, cada vez mais perto de existir. Arrumado na encosta, o
auditório exangue de reservatórios de lembranças e depósitos de potenciais por
cumprir. Os meus braços bem dispostos sobre o parapeito, as minhas mãos
sorrindo recostadas na base e os meus olhos àvidos debruçados para além do que
é possível olhar.
Sonho. Com a amenidade escarlate do outono esperançado e a energia
setembrina de uma espécie de janeiro, de uma espécie de recomeço. A frescura que
se espreguiça à tona do momento, despida, com o cheiro soturno do prazer que
vem assoar-se a mim. A silhueta voluptuosa dos desejos renascidos, desenhada pela
lascívia silenciosa do tempo, das coisas que demoram. O prazer devasso de não
ter pressa e o mundo imenso de não ter medo. Um estímulo incontrolável para
sucumbir, para deflagrar, paulatinamente, sem restrições. O corpo como um
líquido que se espraia numa parede, que jorra pelo chão, para fora de si, que
espasma no vento, que contamina tudo.
Sonho. Com a clareza indiscernível do que é real, com a novidade
inefável do que não se permite prescrever. Os esquissos desistidos, os
rascunhos a lápis, tudo agora em cima da mesa, tudo agora passível de ser
rabiscado a caneta, tudo agora prestes a ser rasurado, reescrito, passado a
limpo. Com a naturalidade de não haver limpeza nenhuma, de haver só a verdade
das coisas que acontecem mesmo. No caderno assíncrono das concretizações, eu
própria, quando era esperado tardar, mais nova do que há anos, mais pronta do que
sempre.
Sonho. Com a textura concreta da própria matéria. Que posso querer
até onde não podia, que posso crescer até onde não cabia, que posso imaginar
para fora das fronteiras da previsão. A vida palpável, alcançável, tão certa e
tão tocável como a claridade tonta das manhãs, como a escuridão lúcida das
noites, como a sucessão de todos os dias. Sou eu, finalmente, a assomar a mim,
nesse espectro inesperado de uma profecia. Eu, em dose mais do que nunca, em tamanho
sem medida. E o universo todo outra vez meu. Outra vez possível.
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