terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

man in the mirror

Vem do lado de lá, estranhamente inconfundível entre as outras pessoas. Ele reconhece-a pelo caminhar balouçado, entortando ligeiramente o mesmo pé direito. E surpreende-se pela forma como o seu desajeitado modo de pisar resulta tão bem com a leveza assimétrica e perfeita das generosas ancas dela. Depois identifica a mesma postura nos dedos das mãos, esguios e finos, esgueirando-se pontualmente nas marrafas fartas do cabelo teimoso. As mesmas mãos compridas, mas dela, paradoxalmente mais brandas e mais claras, perplexamente iguais. Em segundos, ela desvia os caracóis das mesmas sobrancelhas abundantes, mas mais desenhadas, quando enfoca um castanho profundo no fundo do mesmo arqueado dramático do seu olhar. Tão semelhante a expressão de sonho e de susto, e o idêntico pestanejar distraído quando decidem voltar a cabeça para outro lado. É o mesmo gosto pelas roupas claras, a mesma maneira de traçar a mala de couro, a mesma tendência pelo lado mais interior do passeio. Aquela versão delicada e eufemística da sua maneira desleixada de ser banal. E o inconfundível atributo de reparar em tudo sem fazer alarido, sem dar sinal de nada. Enquanto os dois se aproximam, ele tem a certeza de que ela vai abordá-lo com um sarcasmo delicioso, uma alusão irónica aos caracóis ou uma piada desconcertante sobre o destino em que ambos acreditam sem querer. De tal forma que, quando ela se aproxima, ele adivinha-lhe o seu cheiro sem perfume e sabe que, quando ela o tocar, vai querer perfumá-la desse mesmo odor. Enquanto eles caminham para a colisão que ele espera, ele sabe que, se ela for mesmo igual a ele, não vai evitar de desarmá-lo com uma frase tonta, e vai fazê-lo parar com uma suavidade só sua, mas mais atraente, e a seguir fazer uma conversa encantadora sobre uma coisa qualquer. Enquanto as sapatilhas rafadas dele se cruzam com as sandálias velhas dela, ele tem a certeza de que, se ela for mesmo igual, vai voltar atrás logo de seguida, com um gesto descontraído e cheio da energia dele. Ou, melhor, se ela for mesmo igual a ele, até talvez espere um pouco mais, só para tornar tudo mais demorado. Só para depois querer voltar atrás. Só para depois querer ter voltado atrás. 

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

poema

Poema era o nome dela. Chamava-lhe assim por causa da música que trazia consigo ao passar. Porque ela se recitava em voz alta nos dias felizes e se sussurrava para dentro nos dias tristes. Tinha uma métrica que não era bárbara nem alexandrina, era só sua. E olhá-la era sucumbir a um arquejo irresistível de lirismo. Na verdade, ela era um reservatório de recursos estilísticos, cheio de matizes, com muitos sentidos possíveis. E a vontade que dava era de segui-los a todos, de lê-la sem parar, vezes sem fim, em todos os tons, com todas as respirações. A cada leitura ela era sempre nova e era sempre mais, sempre diferente. Com muitas ou poucas sibilantes, toda ela era um rendilhado de tónicas e átonas. Era um soneto desrespeitado, uma ode em improviso, um estribilho sem repetição. Ela era uma aliteração em m de mulher, de madrigal, de maranharado, de marulhado, de metafórico. Irregulares na forma e no conteúdo, as suas gargalhadas eram estrofes desatadas de doçura. E a sua graciosidade esboroava na vida, como um punhado de versos numa folha branca. Livre, tinha em cada gesto uma personificada graça, uma declamada intenção. No trato, a ligeireza de um rondó, e, no carácter, a força vitoriosa de uma epopeia. Límpido, o rosto expressivo tinha vírgulas e espaços, mas nunca pontos finais. Os lábios eram rimas sinuosas em perfeita dicção, um paradoxo de paganismo e erudição. Nos olhos, uma elegia sem tristeza, uma hipérbole de fantasia, um eufemismo de tudo. Se ela pudesse ser escrita, ela não seria escrita, seria desenhada, manuscrita com a brandura do momento, com a delicadeza espontânea da caligrafia arredondada. Se ela pudesse ser escrita, o seu corpo versificado teria de ser esculpido por artesãos num torno de palavras. Se ela pudesse ser escrita, seria em cadernos lisos e perfumados, cadernos em número infinito, e muitas folhas soltas. Se ela pudesse ser descrita, na anáfora interminável da memória, não poderia jamais ser publicada. Porque todos ao pé dela pareceriam só mais uma prosa. E prosa nenhuma poderá alguma vez ser Poema.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

I have a dream

Sonho. Com a janela escancarada sobre os tomos do tempo, sobre o rio ofegante e estático, sobre a tela encenada das casas, que aguarda o grande acontecimento de qualquer coisa ou nenhuma. O ontem emoldurado e ténue. O amanhã desvelado sob a cortina de tule orvalhada, esquadrinhado, espreitante e esperto, desperto, cada vez mais perto de existir. Arrumado na encosta, o auditório exangue de reservatórios de lembranças e depósitos de potenciais por cumprir. Os meus braços bem dispostos sobre o parapeito, as minhas mãos sorrindo recostadas na base e os meus olhos àvidos debruçados para além do que é possível olhar.

Sonho. Com a amenidade escarlate do outono esperançado e a energia setembrina de uma espécie de janeiro, de uma espécie de recomeço. A frescura que se espreguiça à tona do momento, despida, com o cheiro soturno do prazer que vem assoar-se a mim. A silhueta voluptuosa dos desejos renascidos, desenhada pela lascívia silenciosa do tempo, das coisas que demoram. O prazer devasso de não ter pressa e o mundo imenso de não ter medo. Um estímulo incontrolável para sucumbir, para deflagrar, paulatinamente, sem restrições. O corpo como um líquido que se espraia numa parede, que jorra pelo chão, para fora de si, que espasma no vento, que contamina tudo.

Sonho. Com a clareza indiscernível do que é real, com a novidade inefável do que não se permite prescrever. Os esquissos desistidos, os rascunhos a lápis, tudo agora em cima da mesa, tudo agora passível de ser rabiscado a caneta, tudo agora prestes a ser rasurado, reescrito, passado a limpo. Com a naturalidade de não haver limpeza nenhuma, de haver só a verdade das coisas que acontecem mesmo. No caderno assíncrono das concretizações, eu própria, quando era esperado tardar, mais nova do que há anos, mais pronta do que sempre.

Sonho. Com a textura concreta da própria matéria. Que posso querer até onde não podia, que posso crescer até onde não cabia, que posso imaginar para fora das fronteiras da previsão. A vida palpável, alcançável, tão certa e tão tocável como a claridade tonta das manhãs, como a escuridão lúcida das noites, como a sucessão de todos os dias. Sou eu, finalmente, a assomar a mim, nesse espectro inesperado de uma profecia. Eu, em dose mais do que nunca, em tamanho sem medida. E o universo todo outra vez meu. Outra vez possível.